Tenho depressão suicida e os jogos de tabuleiro salvaram minha vida

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Pedaços de papelão devolveram a cor a uma vida monocromática.

Texto de Laurence Kirkby

 

Tenho depressão suicida.

Essa não é uma ótima frase de abertura, e não é algo que gosto de falar, mas é uma parte importante de quem sou. Dos 16 anos em diante, a depressão me levou a me encolher lentamente até que a ideia de sair de casa me deixou pressionado no canto do meu quarto, tremendo.

A maior parte do que aconteceu comigo nos últimos 10 anos nunca foi vista pelos outros porque  me certifiquei de que ficasse escondido. Mas as coisas vazam. Teve a vez em que minha namorada veio me visitar (como eu consegui manter um relacionamento é um verdadeiro enigma para mim até agora), e quando nos esprememos na minha cama de solteiro, ela deslizou a mão sob o travesseiro — e congelou.

“Por que você tem uma faca?”, ela me perguntou, compreensivelmente alarmada. Parei por um segundo, pensando na melhor forma de me explicar sem fazê-la sair correndo gritando do quarto.

“Eu gostava de filmes de terror”,  disse a ela, mas às vezes, “depois de assistir o filme, minha imaginação me assustava. Algumas noites, eu não conseguia me livrar do medo irracional de que zumbis irromperiam ou que vampiros atacariam e eu não tinha como me proteger. Eu mantinha a faca debaixo do meu travesseiro como uma forma de impedir que meu cérebro fosse tão bobo. Lógica perfeita — embora um pouco estúpida”.

Minha namorada se acomodou de volta na cama, satisfeita por eu não estar louco. E nosso relacionamento, continuou.

Mas, embora essa explicação  era uma grande mentira. Embora tivesse esse tipo de pensamento, não era por isso que a faca estava debaixo do meu travesseiro. A faca estava lá porque sua presença me confortava. Segurar aquele cabo de madeira enquanto eu tentava dormir me fez sentir seguro. Porque era a faca que eu vinha usando, há anos, para me automutilar.

Quando minha namorada encontrou a lâmina, minha mente desorganizada já havia racionalizado e raciocinado em uma volta a normalidade. A faca havia se tornado um conforto — na verdade, uma recompensa. Eu dizia a mim mesmo diariamente: “Se você conseguir passar por hoje, então pode pensar em se matar antes de dormir”. Eu usava pensamentos suicidas como uma forma de me motivar a permanecer vivo,  parecer normal.

Uma vez eu tive que ir para a universidade, mas não me senti à vontade. Eu já tinha perdido várias aulas e não podia me dar ao luxo de outra ausência inexplicável. Então eu me batia fisicamente. Fiquei em pé no meu quarto e me soquei repetidamente o mais forte que pude — nos braços, na bochecha. Algo para deixar hematomas visíveis. Trabalho feito, enviei um e-mail para meu professor dizendo que não me sentia seguro para entrar naquele dia porque tinha acabado de ser assaltado. Fiquei no meu quarto, incapaz de sair, convencido de que o que tinha feito era racional.

Então eu fiz o que as pessoas fazem sobre qualquer coisa com a qual não querem lidar; eu ignorei. Continuei indo para a universidade. Continuei indo para o trabalho. Por anos  fiz absolutamente tudo ao meu alcance para manter uma aparência de normalidade.

Eventos sociais eram os piores. Eles se tornavam uma zona de guerra sensorial — cheia de caos e barulho. Mas eu aparentava ser totalmente normal, obviamente. Encontrava maneiras de lidar, sentando em assentos de canto para que eu pudesse ver todo mundo e ninguém estivesse atrás de mim. Eu sempre tinha meu telefone para que  pudesse fingir uma ligação e ir embora sem aviso. Para cada conversa, eu tinha um roteiro. Para cada situação, uma estratégia.

Mas, além de toda essa coisa de depressão paralisante, sou uma pessoa altamente sociável. Parece piada, mas é verdade. Quando estou em forma, posso garantir que serei o centro da sala, contando histórias e piadas. Esses momentos são como explosões; o crepitar de energia de uma pessoa para outra,  a vida saltando pela sala, e sempre foi a alegria mais pura que conheço.

Então você pode ver como essa situação pode causar problemas.

Unboxing

Sempre gostei de jogos de tabuleiro. Durante anos, enquanto minha mente estava desmoronando sobre si mesma, o Banco Imobiliário era meu favorito. Eu era “aquele cara que sabe todas as regras”. Eu abria esse jogo em qualquer ocasião que pudesse. Com o tempo, até encontrei maneiras de torná-lo um jogo de bebida, e inventei uma variante de verdade ou desafio. Eu impus esse jogo a todos que conhecia. À medida que minha depressão piorava e as situações sociais gradualmente se tornavam horrendas, os jogos de tabuleiro ajudaram — realmente ajudaram. Na época, eu não conseguia ver isso. Eu só sabia que gostava de chamar as pessoas pra jogarem Banco Imobiliário .

Com o tempo, a maioria das formas de interação social desapareceu completamente da minha vida. Um longo período de isolamento avassalador se seguiu. Perdi a capacidade de fazer as atividades mais básicas: pegar o telefone, sair de casa e — às vezes — até mesmo falar. Mas o dano mais esmagador, a coisa mais brutal que lentamente foi tirada de mim foi a capacidade de ser feliz. Não, era mais do que isso; eu literalmente não conseguia imaginar o que era felicidade. Era uma palavra de uma língua estrangeira que  não conseguia mais pronunciar. Eu simplesmente existia — e isso era tudo.

Então, completamente por acaso, encontrei o jogo de tabuleiro Twilight Imperium (3ª edição). Em uma conversa casual, meu irmão mencionou que tinha visto um vídeo de pessoas jogando. Particularmente divertido, ele disse. Um mês depois, várias pessoas juntaram  dinheiro e compraram o jogo como um presente de Natal para meu irmão. Eu estava sentado do outro lado da sala quando ele desembrulhou a caixa ridiculamente grande. Quando ele abriu a tampa, vi fileira após fileira de pequenas naves modelo, um baralho de cartas intimidadoramente grande, montes de personagens, planetas e fichas.

Twilight Imperium: Third Edition
Twilight Imperium: Third Edition

Parecia. Incrível.

No dia seguinte dois outros membros da família e um amigo próximo se reuniram, e nós quatro nos sentamos para jogar. Eu estava realmente… animado.

Mas Twilight Imperium é infame por sua extensão e complexidade, e meu irmão nem sabia as regras básicas. Sua explicação levou mais de duas horas enquanto verificávamos e revisávamos cada parágrafo, voltando atrás várias vezes por um labirinto de regras do qual não conseguíamos escapar. Para piorar as coisas, meu pai — o engenheiro e pedante sem fim — continuou perguntando sobre cada permeação de cada regra até que, para não enlouquecer totalmente, comecei a cantar canções de natal na minha cabeça e a fazer meus navios fazerem rotinas de dança do outro lado da mesa.

Depois de três horas, montamos o tabuleiro. Em mais uma hora e meia, terminamos a primeira rodada. Meia hora depois veio o jantar, e tivemos que parar de jogar e limpar a mesa.

Embora eu tivesse acabado de ser conduzido por um círculo do inferno de jogo de tabuleiro, descobri — magicamente — que essa foi, na verdade, a experiência mais divertida que tive em anos. (O que mostra exatamente o quão baixas as coisas estavam para mim naquele momento.)

Por mais terrível que tenha sido essa experiência, o fogo de um novo e estranho interesse se acendeu em mim. Encontrei o game play que meu irmão tinha assistido. Ele me deixou fascinado, até mesmo assistir outras pessoas jogando esse jogo foi uma experiência incrível. Chamei um amigo e compramos nossa própria cópia de Twilight Imperium. Na emoção, desenterramos alguns amigos, passamos algumas horas lutando com as regras e, em uma semana, estávamos todos sentados para jogar.

E…  me diverti. Me diverti muito. Depois que superamos o obstáculo das regras, admitidamente enorme, me vi em uma mesa com amigos e estranhos, me conectando. Confiante em minha própria capacidade de criar estratégias e jogar melhor, em vez disso, pude ver meu plano mestre virar fumaça. Formei uma aliança apressada com um jogador vizinho, prometendo alimentar seu vício em tecnologia se ele não me atacasse. Funcionou… até que não funcionou. Uma hora de jogo, de repente percebi que meu vizinho, agora saturado da melhor tecnologia de ponta da galáxia, não poderia ser impedido de pisotear meu império até virar pó. Tentando não revelar nada, acelerei em segredo em uma corrida desesperada de armas, apenas para que meu vizinho de tecnologia se virasse para mim e perguntasse desconfiado por que eu estava construindo um exército tão perto de nossa fronteira compartilhada. Falar rápido não me salvaria agora, não é?

Valia a pena tentar — mas eu tinha esquecido dos outros quatro jogadores na mesa. Todos eles podiam ouvir nossa conversa, e todos eles estavam procurando por fraqueza. Droga! O que exatamente eu deveria dizer?

O jogo inteiro era assim, um quickstep em constante evolução de problemas meio reais, meio imaginados. Passei quase todo o jogo de oito horas com um sorriso de desenho animado no rosto — o que pode muito bem ter sido o motivo pelo qual outros jogadores estavam tão desconfiados de mim. Eu não me importava; eu estava me divertindo.

É difícil expressar em palavras, mas depois de anos de literalmente nada menos que uma constante e onipresente agonia mental, significou muito para mim ser capaz de… não sentir isso? Experimentar algo bom? A palavra mais próxima que consigo encontrar para isso é “amor”. Amor vertiginoso e risonho, sendo desbloqueado do buraco negro da minha mente aterrorizada por papelão, plástico e regras, combinando-se para me conectar aos amigos dos quais eu sentia tanta, tanta falta.

Nos meses seguintes, eu procurei outros jogos. Descobri que havia muitos jogos de tabuleiro por aí que faziam o Banco Imobiliário parecer, bem, Banco Imobiliário . Um amigo de um amigo trouxe o jogo de tabuleiro Battlestar Galactica uma noite — e eu me diverti. No meu aniversário, dois membros da minha família me deram Tales of the Arabian Nights — e novamente eu me diverti. Repetidamente, essas pequenas caixas de papelão estranhas me deixaram ser, por um tempo, alguém que eu tinha esquecido que podia ser.

Os jogos me desafiavam e me envolviam de novas maneiras — blefe, narrativa, diplomacia, até mesmo de estratégia  pura — e cada jogo continha um quebra-cabeça diferente. Cada um me tirou da minha concha suicida e cada um me deu uma nova maneira de sorrir. Eu podia passar vinte minutos sendo um louco assassino ou passar um dia inteiro tramando as mais complicadas, maquinações militares. Interagi com as pessoas novamente e não estava surtando. Estava discutindo, rindo, mentindo e correndo por toda a gama de emoções na companhia de amigos, e isso não estava me sobrecarregando.

Eu estava vivendo há anos uma vida cada vez mais monocromática. Esses jogos de tabuleiro, essas lindas caixas coloridas, me deram uma maneira de ter uma vida mais colorida.

Ordem

Os jogos de tabuleiro me dão algo que pouca coisa faz. Eles dão liberdade dentro de uma estrutura construída; os jogadores têm o espaço social para bater uns nos outros como carrinhos de bate-bate, enquanto permanecem seguros e presos. Todos competem para conseguir algo — seja para se tornar rei, resolver o quebra-cabeça ou salvar o mundo. Os objetivos e regras formam uma espécie de arena alegre em um game show de Gladiadores. No seu jogo, você pode estar tentando assassinar brutalmente o personagem de outro jogador, mas o jogo sempre garantirá que todos estejam se divertindo, que todos estejam seguros. Cada regra é uma rede de segurança, permitindo que você ande na corda bamba sem medo. Para alguém aterrorizado e incapaz de lidar com situações sociais, essa rede de jogabilidade e regras é presente inacreditável.

Não me entenda mal. Esta não é uma história de Hollywood onde um grande evento catártico acontece e então BAM, é tudo sol e uma faixa indie otimista toca nos créditos. Eu joguei aquele primeiro jogo Twilight Imperium em 2013. Já se passaram  anos, e somente meses depois da primeira partida foi que consegui olhar regularmente para o meu próprio cérebro e perceber que, não, eu não quero mais me matar. Jogos de tabuleiro foi, e continua sendo, um trunfo incrível para minha recuperação.

Juntos

Anos depois dei mais um passo. Depois de me mudar para uma nova cidade, descobri um café de jogos de tabuleiro nas proximidades, então respirei fundo, chamei meu parceiro e comecei a planejar. Ligamos antes para reservar um lugar. Perguntamos sobre preços. Pesquisamos rotas de ônibus, caso eu precisasse ir embora. Os jogos de tabuleiro podem ter ajudado na minha recuperação, mas eu ainda tomava um monte de antidepressivos e vivia ansioso na maior parte do tempo. No entanto, eu não estava disposto a deixar de ir nesse lugar.

Entrar no café pela primeira vez foi uma experiência estranha. Tínhamos chegado cedo, então estava quieto. Um casal de meia-idade estava jogando algum tipo de jogo abstrato do tipo Go no canto. O lugar era bem iluminado, cheirando a café e bolo. O zumbido suave da música e da conversa pontuado por explosões de riso. Foi… legal.

Muitas lojas de jogos são, francamente, bem intimidadoras de entrar, cheias de pessoas olhando feio para a porta quando ela teve a audácia de se abrir. Mas esse café de jogos de tabuleiro era uma coisa bem diferente. Achei a equipe ativamente prestativa, gentil e  ao meu redor havia grupos de pessoas se divertindo abertamente. Para qualquer um que tenha muita ansiedade, isso é algo importante a ser enfatizado.

Pegamos um assento no canto e olhamos ao redor, maravilhados. Cafés, boardgames, e claro, estantes com toneladas de jogos. Cada parte de cada parede neste estava cheia de caixa após caixa após caixa. Estratégia leve? Confere. Quebra-cabeça? Confere. Comédia temática de Cthulhu? Confere. Minha reação — um pouco de espanto boquiaberto — não foi incomum, e o funcionário mais próximo não teve problemas em ajudar:

 

FUNCIONÁRIO: Que tipo de jogo você quer?
EU: Err.. um para dois jogadores?
FUNCIONÁRIO: OK, pesado, leve, curto, longo?
EU: Err… não sei?
FUNCIONÁRIO: OK, sem problemas, aqui estão três que você pode gostar. Algum deles parece ser sua praia? OK, legal, você gostaria que eu explicasse as regras?
EU: Claro, obrigado!

Thirsty Meeples.
Luderia Thirsty Meeples, Inglaterra.

Em 10 minutos estávamos jogando nossa primeira partida e nos divertindo muito.

Naquela primeira visita, ficamos por cerca de cinco horas — e a experiência foi apenas o começo de algo muito maior. Enquanto pagávamos a conta, meu parceiro viu uma placa na parede. “Toda terça-feira — noite de jogo aberto”, dizia. Em vez de reservar um horário e ir com pessoas que você conhece, algumas mesas são reservadas e você pode simplesmente aparecer e jogar. Com completos estranhos. O Monte Everest da socialização!

Ainda tenho dias em que não consigo ir à cidade porque o grande número de pessoas na rua me assusta demais. Mas o conforto dos jogos de tabuleiro, a felicidade que eles me deram nos últimos anos e o precedente estabelecido pela minha primeira incursão ao café provaram ser fortes o suficiente para que eu planejasse comparecer à noite de jogos abertos na terça-feira seguinte. Estou muito feliz por ter feito isso.

Para começar, todos foram legais. Tão legais. Não importa quem você é ou de onde você é. Se você está lá para jogar e se divertir, você se sairá bem nesses eventos. As pessoas só querem jogar juntas — e com você. Certamente haverá um jogo para você entre as prateleiras lotadas. Não só isso, mas todas essas pessoas diferentes terão suas próprias ideias sobre o que querem jogar, expondo você a jogos novos e inesperados de uma forma que não seja agressiva ou repressiva. Bem pelo contrário, na verdade, já que você pode escolher o tipo de jogo com o qual se envolver — aquele grupo vai jogar um jogo de blefe estilo partygame, enquanto este está pensando em um jogo de estratégia cooperativa mais volumoso. Há uma democracia em ação aqui, limitada pela regra simples de “vamos nos divertir” e governada pela loja e sua equipe. Conheci algumas pessoas realmente adoráveis ​​lá e tive algumas noites incríveis.

Nem sempre é perfeito. Às vezes, as pessoas vão querer jogar um jogo que acaba sendo completamente ruim. (O mais memorável é que joguei Smash Up , um jogo tão insuportavelmente ruim que tentei ativamente perder só para terminá-lo, e ainda assim acabei ganhando.) Mas mesmo quando estava imerso em jogos que eu nunca escolheria jogar, esses momentos não pareciam uma perda de tempo. Porque eu ainda estava jogando um jogo com regras, um prazo e espaço para interação. Em outras palavras, com todas essas medidas de quase segurança que me permitiram abrir minhas asas sociais. E com a cola desses jogos de tabuleiro nos unindo, estou livre para falar o quanto eu quiser.

Não vou dizer que todos devem participar de um grupo de jogos de tabuleiro. Mas direi que você deveria considerá-la. Nunca imaginei que jogos de tabuleiro seriam tão importantes para mim. Certamente nunca imaginei que boardgames me ajudariam.

Enfim, eu mantenho a esperança de que os jogos de tabuleiro possam ajudar outra pessoa também. Se isso acontecer, espero te conhecer um dia.

Talvez possamos jogar algo juntos.

 

Laurence é um escritor freelancer com fascínio por jogos e um diploma em ópera (não estou brincando). Laurence mora em Manchester, Inglaterra.

Publicação original: https://arstechnica.com/gaming/2016/05/i-have-suicidal-depression-and-board-games-saved-my-life/

 

 


Se você ou alguém que você conhece possui pensamentos suicidas, peça ajuda!! Estender a mão, quando tudo parece está perdido, é a melhor

Ligue 183  ou acesse CVV –  Centro de Valorização da Vida
Horário de atendimento por telefone: Disponível 24 horas

 

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